Fé
Duas hipóteses podem ser levantadas: a existência ou a inexistência de Deus. Com a rala exceção de três almas penadas, duramente reprimidas pela grande maioria dos fiéis e tidas na conta de atéias, a cidade se manifesta em favor da primeira hipótese.
Quanto à existência de Satanás, apenas o cônego opina de forma negativa. Os ateus - inclusive - somam-se aos fiéis para assegurar a existência do Tinhoso. Os sobradões que rodeiam a praça Apolinário Rebelo são tidos na conta de mal-assombrados e, conforme crença popular, tratam-se das habitações preferidas de Satanás seu horário comercial, ou seja, da meia-noite às quatro da manhã.
Os padres de antanho rejeitavam a hipótese da presença de Lúcifer nos sobradões da praça, preferindo detectá-lo nas tentacoes carnais e na mudança de costumes processada no início do século. Graciliano Ramos, que aqui viveu de 1899 a 1906, anotou numa crônica pertencente a Viventes das Alagoas:
“A cidade tem uns cinco mil habitantes. Contando bem, talvez achássemos seis mil, número que os naturais, bairristas em excesso, duplicam. . . Faz trinta anos que S. Revma. profere no púlpito, com ligeiras variantes, o mesmo sermão, ataque feroz ao mundo, à carne e ao diabo, férteis em tentações não especificadas. Prudente, S. Revma. impugna o exterior do mal. Acusou as primeiras mulheres que vestiram calças e montaram a cavalo de frente, escanchadas, como os homens, mas este indício de perdição vulgarizou-se rapidamente, os silhões e o costume de cavalgar de banda caíram em desprestígio - e o Vigário passou a denunciar outras manhas dos inimigos da alma. Agrediu as saias curtas das moças e os braços descobertos. Ante a resistência foi inexorável: esbaforiu-se e enrouqueceu depois da missa, usou argumentos rijos e, no batismo, afastou da pia as madrinhas não inteiramente agasalhadas. Recusou desculpas, triunfou. Idoso e de óculos, enxerga sem dificuldade os colos expostos. E julga que alguns centímetros de pele nua ocasionam prejuízo sério à cristã".
Para sufragar as almas do purgatório, os fiéis utilizavam-se de uma cerimônia religiosa denominada Banquete das Almas e que consistia em orações, missas, comunhões etc. O Jornal de Viçosa nos fornece dados acerca de um Banquete das Almas efetivado em setembro de 1929:
"O resultado do Banquete foi altamente satisfatório. Ei-Io: 1 missa celebrada, 250 comunhões, 30 comunhões espirituais, 449visitas ao S. Sacramento, 12.809 rosários, 2.349 terços, 677 mortificações, 176 ofícios, 1.005 coroas, 1.048 padre-nossos, 1.988 salve-rainhas, 447 visitas a Nossa Senhora, 100 visitas a outros santos, 50.000 jaculatórias, 193 missas ouvidas, 58 salmos, 545 ladainhas e 5 comunhões reparadoras.
"O Revmo. Sr. vigário Pe. Cândido Machado, muito satisfeito com o resultado exposto, se congratula com todos os fiéis que concorreram para a realização dessa cerimônia e recomenda que todos continuem a rezar e a pedir pelas almas do purgatório". (Jornal de Viçosa, 20 de outubro de 1929.)
Os cultos protestantes e as crenças de origem africana, não tendo almas suficientes para a realização de tão majestoso "banquete", nem por isso deixaram de sentar-se às suas mesas e de se refestelar com o modesto almoço espiritual que suas forças Ihes permitiam.
Por Sidney Wanderley
Duas hipóteses podem ser levantadas: a existência ou a inexistência de Deus. Com a rala exceção de três almas penadas, duramente reprimidas pela grande maioria dos fiéis e tidas na conta de atéias, a cidade se manifesta em favor da primeira hipótese.
Quanto à existência de Satanás, apenas o cônego opina de forma negativa. Os ateus - inclusive - somam-se aos fiéis para assegurar a existência do Tinhoso. Os sobradões que rodeiam a praça Apolinário Rebelo são tidos na conta de mal-assombrados e, conforme crença popular, tratam-se das habitações preferidas de Satanás seu horário comercial, ou seja, da meia-noite às quatro da manhã.
Os padres de antanho rejeitavam a hipótese da presença de Lúcifer nos sobradões da praça, preferindo detectá-lo nas tentacoes carnais e na mudança de costumes processada no início do século. Graciliano Ramos, que aqui viveu de 1899 a 1906, anotou numa crônica pertencente a Viventes das Alagoas:
“A cidade tem uns cinco mil habitantes. Contando bem, talvez achássemos seis mil, número que os naturais, bairristas em excesso, duplicam. . . Faz trinta anos que S. Revma. profere no púlpito, com ligeiras variantes, o mesmo sermão, ataque feroz ao mundo, à carne e ao diabo, férteis em tentações não especificadas. Prudente, S. Revma. impugna o exterior do mal. Acusou as primeiras mulheres que vestiram calças e montaram a cavalo de frente, escanchadas, como os homens, mas este indício de perdição vulgarizou-se rapidamente, os silhões e o costume de cavalgar de banda caíram em desprestígio - e o Vigário passou a denunciar outras manhas dos inimigos da alma. Agrediu as saias curtas das moças e os braços descobertos. Ante a resistência foi inexorável: esbaforiu-se e enrouqueceu depois da missa, usou argumentos rijos e, no batismo, afastou da pia as madrinhas não inteiramente agasalhadas. Recusou desculpas, triunfou. Idoso e de óculos, enxerga sem dificuldade os colos expostos. E julga que alguns centímetros de pele nua ocasionam prejuízo sério à cristã".
Para sufragar as almas do purgatório, os fiéis utilizavam-se de uma cerimônia religiosa denominada Banquete das Almas e que consistia em orações, missas, comunhões etc. O Jornal de Viçosa nos fornece dados acerca de um Banquete das Almas efetivado em setembro de 1929:
"O resultado do Banquete foi altamente satisfatório. Ei-Io: 1 missa celebrada, 250 comunhões, 30 comunhões espirituais, 449visitas ao S. Sacramento, 12.809 rosários, 2.349 terços, 677 mortificações, 176 ofícios, 1.005 coroas, 1.048 padre-nossos, 1.988 salve-rainhas, 447 visitas a Nossa Senhora, 100 visitas a outros santos, 50.000 jaculatórias, 193 missas ouvidas, 58 salmos, 545 ladainhas e 5 comunhões reparadoras.
"O Revmo. Sr. vigário Pe. Cândido Machado, muito satisfeito com o resultado exposto, se congratula com todos os fiéis que concorreram para a realização dessa cerimônia e recomenda que todos continuem a rezar e a pedir pelas almas do purgatório". (Jornal de Viçosa, 20 de outubro de 1929.)
Os cultos protestantes e as crenças de origem africana, não tendo almas suficientes para a realização de tão majestoso "banquete", nem por isso deixaram de sentar-se às suas mesas e de se refestelar com o modesto almoço espiritual que suas forças Ihes permitiam.
Por Sidney Wanderley
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